sábado, 6 de julho de 2019

Por que somos sempre assolados por ideias que julgávamos mortas?


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Nenhuma boa experiência dura para sempre. Vejam o caso da democracia inventada pelos atenienses em 509 a. C. Depois o autocrata-conquistador Felipe (levando a tiracolo seu filho Alexandre, “O Grande”) invadiu a Ática e acabou com a festa:
“- Um povo sem um senhor? Onde já se viu tal disparate? Parem imediatamente com isso”.
E aí a primeira democracia feneceu em 322 a. C. E durante os próximos cerca de 2.000 anos não ouvimos mais falar de democracia. Durou menos que a República romana, surgida coincidentemente no mesmo ano (mas que era apenas uma oligarquia disfarçada, jamais chegou a ser uma democracia).
Isso vale para tudo. Todas as experiências que ousam abrir uma brecha no muro da cultura patriarcal (que ainda é dominante na civilização em que vivemos) duram pouco. São bolhas, que só existem enquanto duram. Não têm continuidade a não ser para o observador que cria uma narrativa, inventando uma linha imaginária de sucessão de eventos. Talvez lancem esporos, mas que só vão florescer novamente quando caírem em ambientes propícios.
Então a questão não é a de procurar garantir a continuidade de um experimento inovador e sim a de configurar ambientes sociais capazes de evocar (ou invocar) manifestações semelhantes de uma fenomenologia da interação que consiga quebrar a reprodução de modos de vida e de convivência social patriarcais. E essas manifestações também serão zonas autônomas temporárias (como percebeu Hakim Bey, em TAZ e, depois, um pouco tardiamente, também eu percebi, em Small Bangs).
Todos nós, que tentamos, alguma vez na vida, uma inovação social, aprendemos isso por experiência própria. Quantas coisas bacanas que fizemos e que desapareceram como se não tivessem existido. Eu mesmo presenciei coisas incríveis acontecendo no entorno dos anos 2000 em processos de desenvolvimento local baseados no investimento em capital social (ou em redes). E depois não é que apenas não tivessem continuado. As próprias ideias que estavam na raiz dessa experiência evaporaram. E nas quase duas décadas seguintes as pessoas não as reconheciam, sequer as entendiam. Explicar para elas o que aconteceu era como falar grego.
Aliás, o mesmo aconteceu com os gregos do século 5 a. C. Se Protágoras ou outro sofista, como Górgias, comparecessem à universidade de Bolonha, ou de Oxford, ou de Paris, já nos anos 1200 a 1500 da nossa era, para explicar por que o kairós tem a ver mais com a opinião (doxa) do que com o conhecimento (episteme), não seriam apenas incompreendidos, mas possivelmente sairiam acorrentados desses excelsos centros do pensamento, talvez diretamente para a prisão ou, dependendo da época e do lugar, para a fogueira.
Entretanto, a possibilidade de criar tem a ver com kairos, não com kronos. Quando um emaranhado de opiniões (não uma sistematização de conhecimentos) se conforma segundo determinadas configurações favoráveis à inovação, é preciso aproveitar a oportunidade que se oferece naquele momento, já que as janelas se fecham rapidamente. Pois tudo é fluxo. No que tange aos diferentes tipos de logos, os sofistas, como se sabe (ou melhor, não se sabe), estavam preocupados com o kairos ou a escolha do tempo adequado. E o kairos não é algo a ser alcançado pelo conhecimento (episteme) — é mais próprio da opinião (doxa).
As janelas se abrem e se fecham. Os mundos sociais se criam e se destroem. Não há nada, na vida social, que possamos chamar de evolução, no sentido biológico do termo, de desdobramento de um processo a partir de uma qualidade intrínseca. Não há nada na sociedade como uma epigênese (capaz de manter o padrão genético anterior). O que há é a resiliência de certas configurações, que ensejam a manifestação de fenômenos semelhantes. Se não houver mudança no padrão de organização, não há alteração significativa dos fluxos interativos da convivência social, que criam e desfazem realidades, mundos.
O que chamamos de social é um campo aberto à invenção (isso é, fundamentalmente, o que chamamos de liberdade – que só pode existir em mundos sociais), mas essa possibilidade é eliminada (ou reduzida drasticamente) pela obstrução de fluxos, pela deformação do campo introduzida por estruturas hierárquicas regidas por dinâmicas autocráticas. Enquanto essa topologia não for alterada, com o aumento dos graus de distribuição da rede, de conectividade e de interatividade, haverá reprodução, não criação. Sim, chamamos propriamente de liberdade à possibilidade de não repetir passado.
Por isso, os mundos em que vivemos ainda estão aprisionados e o futuro ainda está, em grande parte, fechado. A sociedade aberta de Popper é uma aspiração. Por isso, somos tão intermitentemente assolados, ao longo do que chamam de história, pela volta de antigos modelos, de antigas ideias, de antigas narrativas que imaginávamos já definitivamente enterradas. Para escapar da prisão não basta inventar novos softwares. Os padrões patriarcais vão ressurgir continuamente enquanto não alterarmos os hardwares. Está nas nossas mãos fazer isso, mas não fazemos. E não fazemos porque nós – e não algum sodalício maligno qualquer, conspirando em algum lugar secreto contra a humanidade – somos os agentes de reprodução do sistema (os Agentes Smith da Matrix).
Então, quando você for tentar fazer alguma coisa inovadora em termos sociais, não fique pensando em mudar o mundo. Você vai mudar o seu mundo – o mundo social configurado por aquela experiência particular – e isso é tudo. É possível que os esporos lançados por essa experiência caiam em outros lugares e floresçam. Mas nem você, nem ninguém, sabe quando isso vai acontecer, onde vai acontecer e se vai acontecer. E se soubesse, que graça haveria na aventura da vida?
Mudar um mundo já é o bastante. Os comportamentos coletivos mudam assim, a partir de experiências singulares e precárias e não de grandes projetos transformadores totalizantes. Pequenas mudanças, aqui e ali, vão alterando padrões de interação, possibilidades de percepção e modos de atuação. Mas nada indica que isso fará a humanidade virar algo que ela não é. E o que a humanidade é senão a sua humanidade?